Assim como o “bichinho do espírito nômade”, maneira como eu costumo justificar essa minha vontade louca de viajar, é herança de família, os perrengues fora de casa são lembranças que eu tenho desde a infância.
Poderia escrever um livro de perrengues de viagens que aconteceram somente com aluguel de casa de praia e mais da metade dele seria dedicado aos episódios de final de ano. Já teve assalto no réveillon, imóvel que precisamos capinar para conseguir entrar de tanto mato no quintal e casa pequena demais para a promessa que acomodaria 20 pessoas – o que resultou em gente dormindo dentro do carro e colocando colchonete debaixo da mesa da cozinha para descansar. No caso, fui eu que tive a ideia de dormir debaixo da mesa, sem imaginar que seria agraciada com a visita de uma barata de noite e iria bater a cabeça ao levantar e tentar matar o bicho.
Além disso, os inúmeros episódios de falta de água para tomar banho me tornaram “expert” quando se fala em perrengue e, hoje em dia, nem me incomodo mais tanto assim e acabo dando risada da situação.
Pois bem, depois de todas essas experiências de perrengues de viagens na infância, quando cresci e comecei a viajar sozinha, as coisas não mudaram muito. Pelo contrário, os perrengues só continuaram e sempre tento encará-los com um sorriso no rosto. Confira só:
Correr pra fugir de assaltantes em Vila Velha
Em 2014 visitei Vila Velha, no Espírito Santo, para um Congresso de Comunicação com os amigos da faculdade. Do grupo, apenas um não estava hospedado no mesmo hotel onde todos estavam. Depois de um dia de palestras e apresentações de trabalhos, fomos até um barzinho para conhecer um pouco da noite capixaba e relaxar da rotina acadêmica.
Na volta, meu grupo resolveu acompanhar o nosso amigo até a sua hospedagem acreditando que assim, todos ficariam mais seguros. No caminho da volta, passamos por ruas escuras, com terrenos baldios e um de nós observou a presença de um homem em uma construção abandonada que se abaixou ao ver que a gente passava e, em seguida, começou a caminhar atrás da gente.
O alerta tinha sido dado. Entre cochichos rápidos, resolvemos que todos iríamos sair dali correndo até chegar em um lugar mais seguro. Eu resolvi atravessar uma avenida, sem prestar muita atenção e quase fui atropelada. Da cena, só lembro dos meus amigos gritando e do barulho de freada do carro que vinha em alta velocidade. Pelo menos o susto serviu para que o suposto assaltante sumisse dali.
Tempestade no mar dentro de uma canoa
Era o final de uma tarde de sábado, depois de um dia de muito calor e céu limpo com a Revoada dos Guarás em Alcântara, no Maranhão. Eu, um grupo de turismólogas e a nossa guia estávamos a bordo da canoa do Seu Chico, o canoeiro mais famoso da cidade pela sua experiência.
Tudo ia bem até que começamos a ouvir barulhos de trovões e raios cortando o céu. Uma tempestade havia se formado e ainda estávamos distante do continente. Com muita calma, Seu Chico pediu que guardássemos nossos celulares e mochilas dentro de um saco preto para proteger da chuva.
Com o alerta do homem experiente no mar, o pânico se instaurou em mim! Enquanto o céu rasgava com os clarões dos raios, a canoa seguia lentamente sob as águas que, por sorte, não estavam agitadas. A cada barulho do trovão era um grito do grupo! Um grito não, vários.
Passado um tempo, começamos a avistar as luzes da cidade no horizonte. Das poucas vezes que conseguia abrir o olho quando parava de rezar, olhava fixamente pras luzes de Alcântara e pedia com toda a força que chegássemos bem e logo, pois não sabia se o psicológico ia continuar aguentando firme por muito tempo.
Chegando no porto de Alcântara, o barco desligou o motor, a chuva parecia ter tomado outro rumo com os ventos e beijei o chão, assim como os papas costumam fazer quando chegam em uma terra nova.
Incêndio na cozinha durante o intercâmbio
Intercâmbio é sim uma experiência única na sua vida, mas também é sinônimo de perrengue! Em menos de 24 horas desde a minha chegada em Dublin, por exemplo, eu consegui quase provocar um incêndio na cozinha da acomodação onde eu estava hospedada.
O motivo eu já contei aqui, mas repito: um pacotinho inocente de escondidinhos que aqueceu rápido demais com a potência do micro-ondas, saiu torrado e soltou muita fumaça e ativou o sistema de incêndio do prédio todo!
Imaginem a cena: eu me adaptando a falar inglês, o desespero, a fumaça, a sirene ligada e o prédio sendo evacuado. Hoje consigo dar risada, mas nesse dia, chorei pela frustração e por ter ido dormir com a barriga vazia.
Frio, vento e chuva na Bahia
Quem disse que na Bahia é verão todo dia provavelmente não estava lá em meados de agosto de 2019, quando eu visitava a região da Costa do Descobrimento com meus pais. No primeiro dia estava quente, céu aberto e deu para aproveitar a praia e a piscina da pousada.
A esperança de dias de sol e água fresca terminou logo na manhã seguinte, quando deveríamos fazer um passeio pelo Centro Histórico de Porto Seguro. No lugar de protetor solar e óculos de sol, levamos blusas e guarda-chuvas.
O vento soprava com força também, o que diminuía mais ainda a sensação térmica. Quando chegamos em Santa Cruz de Cabrália não foi possível sequer entrar no mar. A canga de praia virou cachecol e as fotos no local onde foi celebrada a primeira missa no Brasil ficaram vergonhosas.
Com um pouquinho de sorte, a chuva cessou nos dias seguintes e, com muito esforço para encarar as baixas temperaturas e as poucas aberturas de céu, deu pra curtir uma praia em Arraial d´Ajuda, Trancoso e Caraíva.
Exagero no peso da mala por excesso de lembrancinhas em Minas Gerais
Em 2015 embarquei com dois amigos para a então desconhecida Capitólio. A viagem de ida foi feita de carro, o que me trouxe conforto para comprar panelas, peças de queijo, cafés, doces dos mais variados tipos e tantas outras lembrancinhas um tanto quanto inusitadas que costumo trazer para minha família e amigos.
O conforto em viajar de carro me fez esquecer que a volta seria feita de ônibus e sozinha. O resultado foi um contorcionismo digno de companhia de circo com as malas, caixas e até isopor na Rodoviária do Tietê até que reencontrasse a minha família, que poderia me ajudar com aquele peso todo.
Sacolejo no barco até Ilha Grande
Eu nunca tive medo de passar mal dentro de um barco, mesmo não estando adaptada com o meio de transporte desde pequena. Mas medo de morrer eu já tive sim! E foi mais de uma vez.
A mais recente foi na travessia de Angra dos Reis, no sul do Rio de Janeiro, até Ilha Grande. Até então, nunca havia feito travessias em mar aberto, o que significa ondas maiores e uma chance maior de tirar a coluna do lugar também.
O barco mais parecia um carrinho de montanha-russa de tanto sobe e desce, enquanto rasgava as ondas no mar. Além do sacolejo, o vento dificultava o equilíbrio, mesmo sentada. Com muito custo, achei uma posição para “ficar travada” e evitar movimentos mais bruscos que pudessem comprometer a coluna.
A posição, o medo e os gritos, obviamente, foram motivos pra muitas risadas e vídeos hilários feitos pelas minhas amigas. A sorte nesse episódio é que estávamos sozinhas na lancha, sem ter que compartilhar a vergonha com mais gente.
Festa não autorizada em hostel
Pirenópolis foi a primeira cidade que visitei na viagem pelo estado de Goiás. Depois de um ônibus até o aeroporto de Guarulhos, 2 horas de avião, um ônibus circular do aeroporto de Brasília até a Rodoviária, 4h30 dentro de um ônibus até Pirenópolis e mais um moto-táxi até, finalmente, chegar no hostel onde eu estava hospedada, o que eu mais queria era sossego.
Aparentemente era o que eu tinha encontrado! Digo aparentemente pois, apesar da decoração zeen, do canto dos passarinhos e do barulho da cascata da piscina, de noite o hostel se transformou com a chegada de um grupo de universitários.
Sem autorização do proprietário que, aliás, não estava no hostel, começou uma festa clandestina na piscina, com muita música alta, gritos e tudo mais que acontece numa “pool party”. Se não bastasse a bagunça que ia contra a proposta do hostel, ainda fui incomodada durante a madrugada por um rapaz que entrava no meu quarto sem autorização.
Depois de uma noite mal dormida, ouvi os pedidos de desculpas do dono da pousada que, não foram suficientes para que eu melhorasse o mau-humor daquela manhã. Fui embora de Pirenópolis para mais um perrengue que viria em seguida.
Ônibus quebrado no meio do nada
Quem viaja pelo interior do Brasil está acostumado a encontrar paisagens naturais que se repetem por quilômetros e quilômetros, até se aviste um posto de gasolina, um hotel de beira de estrada ou um povoado no meio do nada. E foi num cenário desses, no meio do nada, que o ônibus em que eu estava resolveu quebrar entre Pirenópolis e Brasília!
Para a história ficar melhor ainda vale falar que justamente naquele ponto não havia sinal de telefone, o motorista e os passageiros comentavam sobre os últimos assaltos que aconteceram na região e o calor não dava trégua.
O cobrador do ônibus tentou uma carona até a próxima cidade para chamar um socorro. Enquanto isso, o motorista e alguns passageiros tentavam consertar “algum tanque de alguma água de alguma parte” do ônibus que estava furado.
Depois de um tempo, o cobrador retornou sozinho, sem conseguir um novo ônibus para nós. O jeito foi improvisar com papel, plástico e umas fitas que o tal tanque furado aguentasse até a próxima cidade. Só assim conseguiríamos um novo ônibus para completar a viagem.
Enquanto esperávamos numa mísera sombra, soubemos que um dos passageiros estava fazendo aniversário e teve até parabéns! Outra mulher abriu um pote de tortas salgadas para dividir e, assim, os passageiros que até então não se conheciam viraram amigos até o final daquela viagem. Depois da troca de ônibus e do atraso de mais de 2 horas, o desembarque foi alegre em Brasília.
Hotel sem café da manhã em Brasília
Quando a gente começa a planejar as próprias viagens, muitas vezes, por falta de experiência caímos em cilada. Lembro-me que pernoitei em Brasília para seguir até a Chapada dos Veadeiros, depois de ter visitado Pirenópolis.
Confesso que a escolha do hotel foi feita com base apenas no preço. Por isso, além de ter escolhido um local com uma má localização (que nem mesmo os motoristas de aplicativo encontravam), para meu desespero, não havia café da manhã!
Fui informada disso pela manhã, quando acordei disposta e acreditando que encontraria uma mesa farta de comida. Quem me conhece sabe que, apesar da magreza, gosto de refeições bem fartas e passar fome não é comigo. A notícia que não haveria café da manhã incluso foi capaz de congelar meus pensamentos por alguns minutos, antes que saísse desesperada pelas ruas de Brasília em busca de uma padaria.
A sorte foi encontrar uma padaria muito bem estruturada, com diversas opções de pães e bebidas para o desjejum. Com mais sorte, consegui passar um bom tempo comendo muito e voltar em tempo para embarcar na van que me levaria até a Chapada.
Acidente nos estradões da Chapada dos Veadeiros
Se teve uma viagem que teve perrengue foi o mochilão por Goiás! Além do episódio da festa não autorizada no hostel em Pirenópolis, do ônibus quebrado e do hotel de Brasília sem café da manhã, para encerrar com “chave de ouro” esse post não posso deixar de falar de um perrengue que me causou um susto enorme e quase um acidente grave.
Eu e meu grupo voltávamos de caminhonete da famosa Cachoeira de Santa Bárbara, que fica mais de 80 km distante de Alto Paraíso de Goiás, uma das cidades que servem de base para quem visita a Chapada dos Veadeiros.
Eis que no meio do estradão, ouvimos um forte barulho e o motorista gritando: segura! Uma das rodas dianteira da caminhonete havia se soltado. Por sorte, o motorista não estava em alta velocidade e passávamos por um trecho reto, o que facilitou pra que ele jogasse o carro no acostamento e a caminhonete parasse na grama.
Depois de vermos as marcas do freio da pista e a distância até onde a roda havia parado, foi difícil acreditar que todos estávamos bem e que o carro não tivesse capotado.
Mas não houve muito tempo para comemorações: era preciso sinalizar o “acidente” o quanto antes na estrada e buscar socorro, pois o dia já escurecia. Assim que o guia confirmou que todos estávamos bem, ele conseguiu contato com a agência, que enviou um carro para nos buscar.
As mulheres foram embora primeiro e os homens do grupo ficaram para ajudar no reboque do carro. De noite, com todos salvos em Alto Paraíso, o grupo se reuniu aliviado do susto para comemorar.
Ufa!
Depois disso tudo eu parei de viajar por causa de perrengue? Não! Muito pelo contrário, não vejo a hora de colecionar novas aventuras.
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